Breve Histórico

Em artigo na revista alemã Berlinische Monatsschrift, de dezembro de 1783, o pastor berlinense Johann F. Zöllner, ao discorrer sobre tema de ordem religiosa e civil, profere, em nota de rodapé, o seguinte questionamento sobre a ideia de Aufklärung (movimento cultural conhecido como Iluminismo, Ilustração, Época das Luzes, Filosofia das Luzes e Esclarecimento):

O que é Esclarecimento [Aufklärung]? Esta pergunta – que é quase tão importante quanto: o que é verdade? – deveria, porém, ser respondida antes que começássemos a nos esclarecer. E, todavia, não a encontrei respondida em lugar algum.1 

Tal formulação, provocativa e polêmica, em vista dos insuflados debates suscitados à noção de Aufklärung, desencadeará as respostas dos filósofos Moses Mendelssohn (1729-1786) e Immanuel Kant (1724-1804), publicadas, respectivamente, em artigos das edições de setembro e dezembro de 1784, da mesma revista.

Por seu lado, Kant, em artigo intitulado Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento?, reportar-se-á à ideia de maioridade mediante a explanação da noção de menoridade. Tal noção é vista por ele não como a inabilidade da condição de compreensão e entendimento das pessoas em geral, mas como indecisão da pessoa em fazer uso de seus próprios pensamentos sem a tutela de outrem. E, embora afirme ali que a imensa maioria da humanidade “considera a passagem à maioridade difícil” (uma vez ser menos temerário deixar-se tutelar por outrem), declara ser inevitável que a pessoa esclarecida, livre do jugo da menoridade, incline-se à determinação de pensar por si mesma e alcance (no sentido kantiano) a maioridade: 

Pois, encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e vocação de cada pessoa em pensar por si mesma.2

Inscrito, desse modo, entre os primeiros filósofos modernos a definir a noção de pessoa esclarecida como sendo aquela que se liberta da menoridade e trilha o caminho da maioridade (ou seja, que não se deixa tutelar pelos pensamentos de outrem), Kant é apontado como o principal precursor da noção elaborada de Esclarecimento (Aufklärung) que será retomada por importantes pensadores do século XX: Theodor Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-19730), Michel Foucault (1926-1984), Jürgen Habermas (1929), entre outros. Mas, enquanto no âmbito do pensamento kantiano, o termo Aufklärung é tradicionalmente traduzido como Iluminismo, Época das Luzes, Filosofia das Luzes, a noção de maioridade passou a ser concebida, sob certo aspecto, como o processo pelo qual a pessoa, tornando-se esclarecida, resiste à tutela de outrem e pensa por si mesma (isto é, faz uso do próprio entendimento).

É o que se depreende das duas passagens abaixo quando, junto a ponderações sobre a tradução da expressão Aufklärung, são apresentadas referências à noção de Esclarecimento como processo: 

É impossível fazer uma tradução exata do termo filosófico alemão “Aufklärung”, tal a multiplicidade de sentidos congregados nesta noção. Certamente várias tentativas foram feitas, nos diversos idiomas neolatinos propondo-se versões tais como “iluminismo”, “ilustração”, “filosofia das luzes”, “época das luzes”, etc. Nenhuma delas oferece equivalência satisfatória, razão pela qual alguns comentaristas preferem referir-se à “Aufklärung” pura e simplesmente, sem se preocupar em traduzir o vocábulo. Diversos motivos levam-nos a julgar que, sem ser perfeita, a tradução pela palavra “esclarecimento” talvez seja de todas a melhor, principalmente porque acentua o aspecto essencial da “Aufklärung”, o de ser um processo, e não uma condição ou corrente filosófica ou literária, que a razão humana efetua por si mesma para sair do estado que Kant chama “menoridade”, a submissão do pensamento individual ou de um povo a um poder tutelar alheio.3

A tradução de Aufklärung por esclarecimento requer uma explicação: por que não recorremos ao termo iluminismo, ou ilustração, que são as expressões mais usuais entre nós para designar aquilo que também conhecemos como a Época ou a Filosofia das Luzes? Em primeiro lugar, como não poderia deixar de ser, por uma questão de maior fidelidade: a expressão esclarecimento traduz com perfeição não apenas o significado histórico-filosófico, mas também o sentido mais amplo que o termo encontra em Adorno e Horkheimer, bem como o significado corrente de Aufklärung na linguagem ordinária. É bom que se note, antes de mais nada, que a Aufklärung não é apenas um conceito histórico-filosófico, mas uma expressão da língua alemã, que encontra um correspondente exato na palavra portuguesa esclarecimento, por exemplo em contextos como: sexuelle Aufklärung (esclarecimento sexual) ou politische Aufklärung (esclarecimento político). Neste sentido, as duas palavras designam, em alemão e em português, o processo pelo qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em questões de ordem prática (religiosas, políticas, sexuais, etc.).4

A origem das noções de pessoa esclarecida e maioridade intelectual remonta, como se pode ver, ao conceito moderno de Auflkärung, representado inicialmente pelo pensamento europeu do século XVIII (Immanuel Kant e outros) e, posteriormente, pelo do século XX (Adorno, Horkheimer, Foucault, Habermas  e demais).

Todavia, em vista de tais considerações, destacamos que, de Kant e demais pensadores, conservamos apenas as referências às ideias de esclarecimento e maioridade, reservando ao Curso definições próprias às noções de pessoa esclarecida e maioridade intelectual. O que nos leva a assinalar que estas noções distinguem-se essencialmente de quaisquer outras dispostas por este ou aquele pensador. E o que também nos desobriga (em quaisquer de suas versões ou vertentes) da adesão ao conceito de Esclarecimento como modelo filosófico (Iluminismo, Ilustração, Século das Luzes, Filosofia das Luzes), reservando seu emprego estritamente à noção de processo pelo qual a pessoa, buscando esclarecer-se em relação ao conhecimento humano, conquista a maioridade, ou seja, a autonomia, a emancipação e a independência intelectuais relativamente ao Saber produzido pela Humanidade.

 

Prof. Marcos Gomes

· Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Graduado em Filosofia (bacharel e licenciado) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

· Professor de ensino superior em cursos de graduação e pós-graduação (lato sensu) de instituições públicas e privadas catarinenses (FACVEST, UNIPLAC, CESUSC, UNIFEB e USJ).

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1 KANT, ERHARD, HAMANN, HERDER, LESSING, MENDELSSOHN, RIEM, SCHILLER, WIELAND. O que é Esclarecmento? Rio de Janeiro: Viaverita, 2011.

2 KANT, I. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? [Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?]. In: Immanuel Kant – Textos Seletos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. Edição bilíngue.

3 KANT, I. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? [Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?]. In: Immanuel Kant – Textos Seletos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. Edição bilíngue. Nota do Tradutor. Tradução de Floriano de Souza Fernandes.

4 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. [Dialektik der Aufklärung]. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Nota Preliminar do Tradutor. Tradução de Guido Antonio de Almeida – Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.